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EUA: revista de laptops em fronteira gera polêmica

Mohamed Shommo, engenheiro da Cisco Systems,viaja ao exterior a trabalho diversas vezes por ano, de modo que está acostumado a abrir as malas para inspeção de fronteira sempre que volta aos Estados Unidos. Mas nos últimos anos as inspeções passaram a incluir muito mais que sua bagagem.

Agentes de fronteira olharam as fotos de família de Shommo em sua câmera digital, examinaram versículos do Corão e outros arquivos em áudio que ele tinha em seu iPod e até mesmo verificaram as buscas que ele havia realizado no Google usando o laptop de sua empresa.

“Eles literalmente procuraram em toda parte e todo equipamento que pudessem”, disse Shommo, que agora minimiza a sua carga pessoal em viagens internacionais e apaga as fotos de sua câmera antes de retornar aos Estados Unidos. “Não creio que ninguém tenha o direito de vasculhar meus objetos pessoais sem minha autorização. E nunca se sabe como eles interpretarão aquilo que encontram”.

Dados todos os detalhes pessoais que as pessoas costumam manter armazenados em seus aparelhos digitais, as buscas em laptops e outros aparelhos em postos de fronteira podem revelar às autoridades policiais muito mais sobre um passageiro do que uma simples revista de bagagem revelaria. Isso despertou a desconfiança dos grupos de defesa das liberdades civis e dos defensores dos direitos dos viajantes – e agora também se tornou preocupação para alguns legisladores federais, que esperam impor restrição a esse tipo de prática a partir do ano que vem.

Eles temem que o governo tenha cruzado uma linha sagrada ao vasculhar agendas eletrônicas pessoais e mensagens confidenciais de e-mail, bem como documentos comerciais sigilosos, fichas médicas e financeiras e outras informações profundamente privadas.

As buscas, dizem os oponentes, ameaçam as garantias contra buscas e apreensões injustificadas adotadas por meio da quarta emenda à constituição dos Estados Unidos, e podem restringir também a liberdade de expressão e as demais atividades protegidas pela primeira emenda. Além disso, advertem, essas buscas geram preocupação sobre a possibilidade de que os suspeitos estejam sendo escolhidos com base em perfil étnico e religioso, já que os alvos das medidas muitas vezes são muçulmanos, entre os quais cidadãos norte-americanos e residentes legais no país.

“Sinto que não tenho privacidade alguma”, diz Shommo, que nasceu no Sudão e vive nos Estados Unidos há mais de uma década. Ele pretende solicitar cidadania norte-americana no ano que vem. “Não me sinto tratado de forma igual às demais pessoas. Sinto-me alvo de discriminação”.

A divisão de Alfândega e Proteção de Fronteira, parte do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, afirma que dispõe de autoridade constitucional para realizar buscas de rotina na fronteira – mesmo sem suspeita de delitos -, a fim de impedir que pessoas e objetos perigosos entrem no país. Essa autoridade, afirma o governo, se aplica não apenas a pastas e malas mas também a livros, documentos e outros materiais impressos – e também a aparelhos eletrônicos.

Esse tipo de busca, aponta o governo, ajudou a revelar todo tipo de conteúdo, de vídeos sobre mártires terroristas e outros materiais violentos de promoção da jihad a pornografia infantil e propriedade intelectual roubada.

Embora o Departamento de Segurança Interna aponte que esses procedimentos estavam em vigor antes dos ataques do 11 de setembro de 2001, os grupos de defesa das liberdades civis registraram alta no número de queixas sobre buscas em equipamentos eletrônicos na fronteira, nos dois últimos anos, de acordo com Shirin Sinnar, advogado do Asian Law Caucus. Em alguns casos, viajantes suspeitam que agentes de fronteira tenham copiado arquivos de seus aparelhos, depois de reterem os laptops ou celulares por períodos que variam de alguns minutos a algumas semanas, ou ainda mais.

Inspeções como essas parecem representar uma “expedição de caça” dos agentes de fronteira, diz Farhana Khera, diretora executiva da Muslim Advocates, que defende os direitos civis dos muçulmanos.

As objeções a esse tipo de prática levaram o Asian Law Caucus e a Electronic Frontier Foundation a apresentar uma solicitação de informações, nos termos da Lei de Liberdade de Informação, para que lhes fossem explicadas as normas adotadas pelo governo federal para buscas em aparelhos eletrônicos em postos de fronteira. O governo não respondeu à solicitação, e por isso os grupos abriram um processo, este ano, e os legisladores começaram a exigir respostas.

Assim, em julho, em meio a crescente pressão política, o Departamento de Segurança Interna divulgou um comunicado formal no qual afirma que agentes federais têm o direito de fazer buscas em documentos ou aparelhos eletrônicos em postos de fronteira mesmo que não haja causa de suspeita prévia. As normas também permitem que os agentes de fronteira confisquem documentos e aparelhos “por período razoável” a fim de executar buscas rigorosas nos mesmos, “no local da apreensão ou em outros locais”.

O problema com essas normas, argumenta Marcia Hoffman, advogada da Electronic Frontier Foundation, é que o conteúdo de um laptop ou de outro aparelho eletrônico é fundamentalmente diferente do conteúdo de uma valise de viagem típica.

Como diz o senador Ron Wyden, democrata do Oregon que propôs um dos diversos projetos de lei que estão tramitando no Congresso para restringir esse tipo de busca, “ninguém pode colocar toda sua vida numa pasta, mas é possível colocar toda uma vida em um computador”.

Susan Gurley, diretora executiva da Associação dos Executivos de Viagens Empresariais, que apresentou solicitação própria de informação ao governo quanto às normas de buscas em laptops, apontou que as buscas de fronteira representem preocupação especial para os viajantes internacionais de negócios, porque muitas vezes eles portam informações sensíveis em seus laptops, e não têm a opção de deixar as máquinas em casa ao viajar.

E, para muitos viajantes, as preocupações vão além da questão da privacidade pessoal ou da privacidade de funcionários. Advogados podem viajar transportando documentos protegidos pelos privilégios de confidencialidade entre advogado e cliente. Médicos podem levar fichas de pacientes em suas jornadas.

Tahir Anwar é um imã em uma mesquita em San Jose, na Califórnia, e por isso seu laptop e seu iPhone contêm informações confidenciais sobre os membros da mesquita, entre as quais mensagens pessoais de e-mail.

Anwar viajou ao exterior 12 vezes nos últimos 30 meses, e foi parado ao retornar aos Estados Unidos em cada uma dessas viagens. Agentes de fronteira revistaram seu laptop e em uma ocasião apreenderam seu celular por 15 minutos.

Agora, quando Anwar viaja, ele simplesmente deixa o laptop em casa e apaga os e-mails de seu iPhone antes de cruzar a fronteira, recuperando os arquivos no computador quando volta para casa.

“As pessoas me contam segredos muito íntimos”, disse Anwar. “Eu peço a elas que me mandem e-mails, e por isso minhas pastas de e-mail contêm muitas informações pessoais. Caso as pessoas descubram que essas informações estão sendo observadas por terceiros, eu não poderia servir ao meu propósito como líder religioso, e os fiéis não me procurariam”.

O governo argumenta, de sua parte, que alguns dos conteúdos ilegais mais perigosos são transportados em formato digital, hoje em dia – o que faz das buscas em aparelhos eletrônicos uma ferramenta crucial para as autoridades policiais.

Entre as buscas bem sucedidas que o governo menciona, nos últimos anos, há o caso de um homem que chegou da Holanda ao aeroporto de Minneapolis, em 2006, transportando imagens digitais de líderes importantes da Al Qaeda e de bombas caseiras sendo detonadas, e combatentes lendo seus testamentos. O homem foi condenado por fornecer informações fraudulentas para obter seu visto de entrada, e foi expulso dos Estados Unidos.

“Tratar a mídia digital em uma fronteira internacional de maneira diferente da forma historicamente adotada pela divisão de Alfândega e Proteção de Fronteira para tratar documentos e outras formas de transmissão de informações poderia oferecer grande vantagem aos terroristas e àqueles que desejam o nosso mal”, afirmou Jayson Ahern, comissário assistente da divisão, em declaração escrita submetida ao subcomitê constitucional do Comitê Judiciário do Senado, em junho. O Departamento de Segurança Interna não enviou representantes para depor.

Amy Kudwa, porta-voz do departamento, também enfatizou que apenas uma fração de 1% dos viajantes são submetidos a buscas em seus laptops, na fronteira. Ela acrescentou que o departamento não utiliza religião, raça, etnia ou outros critérios assemelhados para conduzir esse tipo de busca.

Até o momento, apenas alguns poucos casos judiciais consideraram a questão.

Tribunais federais de apelação sustentaram duas buscas realizadas em computadores sem mandados ou sem base de suspeita, as quais resultaram na localização de imagens de pornografia infantil posteriormente usadas como provas em casos criminais.

Mas no final do ano passado um juiz federal norte-americano em Vermont decidiu que o governo não tinha o direito de forçar um homem a revelar a senha de seu computador, depois que uma busca na fronteira canadense localizou pornografia infantil. A promotoria federal em Vermont está apelando da decisão.

E agora o Congresso está participando do debate. Alguns projetos de lei sobre o assunto foram apresentados, e podem ser aprovados no ano que vem.

Um deles, do senador Russell Feingold, democrata do Wisconsin e presidente do subcomitê constitucional, requer que haja suspeita razoável de atividades ilícitas para justificar buscas em aparelhos eletrônicos usados por cidadãos e residentes legais dos Estados Unidos. Se o aparelho for confiscado por mais de 24 horas, serão necessários mandado e causa provável.

O projeto também proibiria que os passageiros fossem revistados de maneira minuciosa com base em fatores como raça, etnia, religião ou origem nacional.

Tradução: Paulo Migliacci ME

AP

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